Trabalhando com cães - os desafios dessa arena emocional.
/Nessa última semana eu tive a oportunidade de escutar alguns episódios bem interessantes em podcasts produzidos por diferentes profissionais que trabalham com cães ao redor do mundo. Ouvir o relato de profissionais diferentes, em cidades e países diferentes, traz uma visão ampla de como somos diferentes e ao mesmo tempo tão iguais. A montanha russa de emoções, conflitos internos, dúvidas e questionamentos faz parte da nossa profissão, e hoje vamos mergulhar um pouco mais à fundo nesse universo.
Eu gosto muito desse formato de mídia (podcast) já que é uma maneira versátil de absorver informações. Você pode escutar enquanto caminha com seus cães, enquanto cozinha, limpa a casa, dirige ou espera na fila de algum lugar. Eu acredito que escutar traz um aprendizado diferente já que não temos o visual, e isso força nosso cérebro à dedicar mais atenção ao que estamos ouvindo. Vale muito a pena experimentar!
A minha inspiração para esse artigo veio da descoberta de um podcast chamado Confessions of a Dog Trainer, produzido por Bethany Johnson, da empresa Walking Dog Training, na Florida, EUA. Os episódios são como um diário, detalhando experiências pessoais, dúvidas sobre o negócio, casos específicos e conflitos internos que muitos de nós, em algum momento vivemos.
O primeiro episódio que escutei foi uma conversa entre Bethany e seu pai, aonde ela falava sobre suas dúvidas em relação à como conduzir seu negócio e ele lhe dava conselhos com base em experiência. Esse episódio é sensacional, especialmente para novos profissionais. Todos nós, em algum momento já tivemos essas dúvidas. Como cobrar, quanto cobrar, que tipos de programa de treinamento oferecer? Como conseguir clientes, como atrair o público certo, como apresentar seu trabalho e como criar uma rotina de trabalho sustentável?
Logo depois escutei um outro episódio aonde Bethany falava sobre como ela se consumia com cada caso, e como essa dedicação extrema deixava ela absolutamente exausta no final do treinamento desses cães. Ela conta como precisou criar períodos de descanso para repor as energias, e criar novos hábitos pessoais para viver uma vida mais equilibrada dentro dessa profissão.
É muito interessante acompanhar a jornada dessa menina, já que muitos dos momentos que ela descreve fazem parte da jornada de nós profissionais. Pensando em tudo isso, decidi compartilhar aqui com vocês algumas das lições que aprendi nessa vida de trabalho com cães.
A eterna batalha entre o emocional e o racional.
Boa parte dos profissionais que atuam com comportamento canino e adestramento são pessoas normais, que um dia resolveram ter um cachorro, que por alguma razão trouxe algum tipo de desafio. Atravessar essa primeira barreira é sempre o que nos leva à querer aprender mais sobre o universo de cães. Uma vez que começamos a entender melhor como tudo isso funciona, é quase impossível voltar atrás. Trabalhar com cães se torna uma força que nos move e nos faz sentir vivo. É uma sensação incrível poder ter esse grau de comunicação com animais, não há dúvidas quanto à isso.
A batalha emocional, ou melhor, as batalhas emocionais, começam quando entramos no mercado como profissionais e precisamos fazer dessa paixão um negócio de verdade. Criar um negócio do zero requer coragem, especialmente num país como o Brasil, aonde não existe um histórico favorável de empreendedorismo. Essa escolha requer muito planejamento e objetividade. Nesse momento as emoções podem, e muitas vezes vão te prejudicar!
Eu lembro quando estava no processo de abrir meu hotel e creche para cães. Naquela fase eu realmente deixei minhas emoções falarem mais alto. Eu estava tão feliz de realizar esse sonho que, sem perceber, tirei meus pés do chão e só conseguia ver o lado maravilhoso das coisas. Só o tempo e a realidade me fizeram ver o lado racional das coisas com mais objetividade, e assim fui aprendendo a realmente encontrar esse equilíbrio.
Por falar em emoção, ainda nessa etapa da minha carreira, eu tive muitos desafios no sentido de entender as limitações da relação que eu tinha com meus clientes humanos e cada um de seus cães. Foi nessa fase que eu aprendi que o trabalho com cães, especialmente na modificação comportamental, é um trabalho de equipe. Existe a nossa parte como profissional, de instruir, esclarecer e mostrar como fazer, e a parte da família em absorver e dar continuidade com o cão. Essa é uma lição dura no começo, mas extremamente necessária. É uma lição sobre responsabilidade e compromisso de cada um.
Uma boa parte dos profissionais que eu conheço ainda passa por essa frustração. Eu sempre escuto que o cachorro não evolui porque a família não se dedica aos treinos, e assim o profissional vai perdendo a motivação. A longo prazo muitos profissionais desistem da profissão, ou optam por uma postura de mais neutralidade, cobrando menos de si mesmos sem esperar grandes resultados. Mas será que esse é o caminho?
Eu acho que qualquer um de nós, que já está nessa jornada há algum tempo, pode atestar que o lado mais desafiador desse negócio não está no trabalho manual com cada cão, mas sim na nossa capacidade de influenciar as famílias e motiva-las a querer materializar os resultados de verdade. Vale lembrar que antes de pensar em influenciar e motivar pessoas é preciso saber atrair o público certo, ou seja, o público que de alguma forma, já tem uma inclinação e atração por seu modelo de trabalho.
Esse é outro momento de batalha psicológica interna já que para colocar isso na prática é preciso se mostrar, ou seja, falar com clareza sobre o que você faz, como faz, quanto cobra e etc. É deixar seu público te conhecer antes de te ver pessoalmente. É permitir que as pessoas formem opiniões com base no que você vai falar, mostrar e escrever, publicamente. Para muito gente essa é uma barreira indestrutível. É o auge na vulnerabilidade e a abertura das portas para críticas e julgamento. Parece assustador mas a realidade é, isso é libertador. Pode não parecer mas é assim que se abrem os caminhos para encontrar os clientes certos, aqueles que entendem o que faz, o que você espera do treinamento e estão dispostos a trabalhar com você.
O que visualizamos versus a realidade.
Quem disse que expectativas só existem nas mentes dos clientes? Eu perdi as contas de quantas vezes imaginei exatamente o que eu gostaria de fazer numa aula, ou consulta, e quando cheguei no lugar ví que nada daquilo seria possível. Isso já aconteceu tanto que parei de planejar completamente as aulas. Eu tenho uma idéia dos próximos passos mas não entro mais nos detalhes na minha cabeça para não me frustrar.
Milhares de coisas podem quebrar essa nossa expectativa, especialmente para quem faz atendimento presencial como eu. Algumas vezes o espaço físico é limitador, outras vezes o bairro tem calçadas mais estreitas, algumas vezes o cão não está bem disposto, outras vezes a pessoa não está num bom dia e por aí vai. São tantas as variáveis que é fácil cair na armadilha da frustração. Eu admito que até hoje volto na minha memória e revisito casos que já atendi e penso como poderia ter feito melhor se tivesse num espaço diferente, num bairro diferente, numa casa diferente e etc.
Todas as vezes que me pego pensando assim entendo que trabalhar com limitações sempre vai ser um grande desafio, mas talvez essa seja a grande lição. Fazer o melhor que podemos com o cenário e situação que temos nas mãos. Eu sempre me vejo pensando em alternativas, em novas possibilidades, talvez outro espaço para treinar cães… Mas hoje faço essa análise com mais precaução, sempre considerando que eu não posso gravitar para o que mais me traz satisfação, mas sim para o que pode trazer melhores resultados, no quesito cão e família e no lado sustentável de negócio.
Um profissional também deve ter uma vida normal.
Existe um conceito distorcido sobre profissionais que trabalham com cães aonde parece implícito que a vida dessas pessoas gira exclusivamente em torno de cães. Isso não é verdade! Todos nós que trabalhamos com cães somos seres humanos normais (na maioria das vezes!) que temos vida pessoal, família, amigos, filhos e outros interesses.
Muitos aspirantes da profissão acreditam que podem encontrar total satisfação apenas com a rotina do trabalho e acabam se tornando pessoas difíceis. É importante saber que nessa categoria de trabalho nós vamos lidar com pessoas, por isso saber transitar no universo humano com facilidade é mais do que essencial. Criar uma rotina de trabalho aonde exista tempo para tudo faz toda a diferença, já que tudo que podemos desenvolver no lado de relacionamento pessoal só vem para agregar valor no nosso trabalho profissional.
Quando entendemos como as pessoas pensam, se comunicam e agem no universo pessoal, criamos maiores e mais eficazes habilidades de trabalhar com elas no treinamento de seus cães, tornando assim nosso trabalho mais eficiente e duradouro à longo prazo. Para masterizar isso precisamos estar com pessoas e interagir com elas com frequência, especialmente fora da nossa rotina com cães.
É curioso perceber o quanto podemos aprender sobre pessoas em eventos de família, visita aos amigos e conversas em ambientes sociais. Até um bate papo na padaria pode trazer grandes aprendizados. Falar sobre assuntos diferentes, ouvir a opinião e posicionamento de pessoas diferentes abre um novo universo de percepção que pode ser muito útil nos atendimentos presenciais.
Pausas, reflexões e recomeços.
Todos nós podemos desenhar a rotina que queremos ter. Ser um empreendedor é uma grande responsabilidade mas uma que traz a liberdade de escolha com consequências boas e ruins. Podemos criar uma rotina que inclua tempo para treinamento, atendimentos e manutenção do lado administrativo do negócio, mas tão importante quanto isso é criar tempo para você. Tempo para descansar, recarregar as baterias, refletir sobre o que você já faz e aonde quer chegar e pensar em novos projetos de vida e de trabalho.
Muitos profissionais acabam se afundando numa rotina pesada de trabalho manual e acabam não tendo tempo para se dedicar à construção do seu negócio em si, sua família e seu lado pessoal. Essa postura tem um preço alto à longo prazo. É claro que em qualquer carreira é preciso fazer sacrifícios e abrir mão de algumas coisas mas precisamos de uma certa perspicácia para fazer os sacrifícios certos, pensando no futuro.
Um bom exemplo disso está na forma como os profissionais divulgam seu trabalho. Muitos passam tanto tempo trabalhando com cães que não tem tempo de sentar e produzir um material bacana de divulgação. Isso é um problema já que divulgação é um grande lado do negócio e sem esse elemento as chances de alcançar o público certo ficam potencialmente menores.
Outra alternativa interessante é tirar um dia da semana para fazer uma pausa de reavaliação. Nesse dia você pode revisar sua agenda, produzir e programar seu material de divulgação, respirar, relaxar, e trabalhar em novos projetos. Para quem trabalha com hospedagem, treinamento intensivo e creche para cães, pensar em períodos de pausas é mais do que essencial. Essa turma vive uma rotina bem puxada que exige muito no lado físico e psicológico por isso pausas devem ser mandatórias de tempos em tempos.
Eu acompanho alguns profissionais nos EUA que fazem treinamentos intensivos, no formato de hospedagem, em suas casas. Alguns deles definem suas rotinas sempre separando uma semana a cada dois meses sem nenhum novo caso. Isso permite que eles tenham uma pausa, façam programas de pessoas normais, e possam voltar à ativa com mais energia e disposição para os novos desafios. Esses períodos são importantes já que todos nós estamos sempre aprendendo, e é justamente nos momentos de pausa que podemos apreciar aonde estamos, como chegamos até aqui e até aonde queremos ir.
Em resumo, eu poderia escrever mais 20 páginas sobre os desafios dessa arena emocional, os altos e baixos, os questionamentos e as descobertas constantes dessa profissão, mas a idéia principal aqui é mostrar que todos somos seres humanos numa constante jornada de aprendizado, e fraquezas e vulnerabilidade fazem parte de todos nós. Dividir essas experiências e ouvir relatos de outros profissionais é sensacional e abre muitas portas para uma visão mais ampla do que é de fato a vida de quem trabalha com cães.