Socialização de cães e os problemas nos centros urbanos.

O termo “socialização” é talvez um dos mais usados, nos dias de hoje, dentro das categorias de trabalho com cães. É esse termo, talvez por si só, que impulsionou o surgimento das creches e espaços para cachorros, especialmente em grandes cidades. O termo, como uma série de outros, traduz o que, para os nossos olhos, seria o processo de integração social de cães. Mas será que é isso mesmo?

Depois de uma década observando o desenvolvimento do mercado pet eu percebo que o termo “socialização”, como muitos outros, tem sido usado de forma sugestiva para induzir novos donos de cães à um caminho muitas vezes perigoso no processo de aprendizado e desenvolvimento de habilidades de seus cães. As explicações ficaram vazias, repetitivas e sem fundamento real. A noção real foi perdida e substituída por um ideal humano de ver cachorros “brincando” com seus “amigos” como se fossem crianças.

O famoso termo, também exaustivamente usado, “humanização” foi absorvido e mesclado dentro do conceito de socialização sem que muita gente tenha percebido. Vamos ver aqui alguns simples exemplos;

Todas as pessoas que adquirem um cão pela primeira vez, provavelmente vão ouvir de alguém que o cão precisa ser socializado o quanto antes para evitar problemas de comportamento social. As sugestões oferecidas nesse momento são: deixar o cachorro interagir com outros cães durante o passeio, levar o cachorro para uma creche, levar o cachorro para um parque ou até trazer um segundo cachorro para o convívio da casa. Parece ótimo e aos olhos leigos faz todo o sentido, certo?

Porém, essa resposta lógica que temos nada mais é do que mais uma expressão de humanização, ou seja, nossa conclusão de que essas alternativas são as melhores e mais indicadas vem apenas na nossa percepção construída do que é o melhor cenário para os cachorros. Vamos analisar objetivamente o que está sendo proposto aqui;

Deixar o cachorro interagir com cães estranhos no passeio.

Apenas na nossa visão e percepção humana isso poderia ser positivo. Nós humanos somos seres sociais, mas nem nós interagirmos com estranhos quando caminhamos nas ruas, porém, de alguma maneira, acreditamos que os cães, uma espécie predatória, com fortes raízes no convívio de unidade de família original (ou seja, seu grupo ou família nata), deveria fazer isso diariamente. A única justificativa lógica para a essa postura humana é a projeção no cachorro da imagem de uma criança. Como dito acima, nós adultos não interagimos com outros adultos estranhos nas ruas, porém, os pais constantemente incentivam as crianças a interagirem com outras crianças quando esses encontros inusitados acontecem. E aí está a real explicação da humanização nessa sugestão de “socialização” para cães.

A realidade é cães na natureza, jamais fariam essa opção. Como temos poucos exemplos de cães selvagens, podemos trazer essa analogia para cães de rua. Em áreas aonde existem grupos de cães de rua, é facilmente perceptível que a postura deles é exatamente inversa. Esses grupos prezam pelo seu território e sua sobrevivência e cães estranhos em seu caminho são uma ameaça recebida com muita hostilidade. Para comprovar essa afirmação basta conversar com qualquer pessoa que viva em áreas assim. Os relatos são constantes, e essas pessoas que tem cães domésticos e vivem em áreas como essas, normalmente nem conseguem caminhar nas ruas com seus cães por medo de possíveis ataques.

E, não, os cães desses cenários não são assim porque passaram por maus tratos. Eles são assim porque cresceram apenas com orientação de seu grupo e variações de seu ambiente, sem intervenção humana adequada. Esses são os cães urbanos “selvagens”, o mais próximo da tradução instintiva da espécie que temos acesso.

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Levar o cachorro para a creche.

Esse talvez seja o exemplo que fala por si só, até porque o nome dado ao serviço já expressa claramente o paralelo entre a percepção humana e a projeção nos cães. De onde conhecemos esse nome de serviço? E para que ele serve? Um lugar de cuidados com crianças pequenas, certo? Veja que eu disse crianças pequenas, e não apenas crianças. Não chamamos esses lugares de escolas ou centros de treinamento, pelo menos não na maioria dos casos e nem abertamente. Porque será?

A resposta é simples. O termo creche remete o humano à uma visão de bebês e crianças pequenas inocentes que podem ficar juntas, brincando e se divertindo até os pais voltarem do trabalho. Tudo isso sem nenhum risco. Usar nomes como escola e até centro de treinamento traria um outro tom, já mais distante da visão de inocência que apela mais forte para o lado emocional das pessoas. Logo, mais uma vez, usamos a nossa boa e velha prática de humanização para justificar nossa visão de socialização para cães.

Vamos a realidade dos fatos. A ideia de inserir cães de origens diferentes, que vivem com famílias diferentes, com hábitos diferentes, num mesmo espaço, todos os dias, soltos juntos, é um risco enorme. Na natureza da espécie canina isso jamais aconteceria, em hipótese alguma. Quem se propõe a oferecer esse serviço tem que ter uma habilidade muito grande de gerenciar esse espaço, e de saber dividir as atividades desses cães para garantir a segurança de todos constantemente. Esses cães, na análise da espécie, não podem ser considerados uma matilha. Eles apenas frequentam o mesmo espaço, mas não são uma unidade sólida já que vivem com famílias diferentes.

Para que um espaço com essa proposta funcione com sucesso, muitas medidas de segurança e protocolos de práticas diárias tem que ser implementados. Lembrem que cães são animais predadores. Um grupo de origens diferentes juntos é a antítese do natural, e os riscos sempre vão existir. Encher o espaço de brinquedos, jogar bolinha e nadar na piscina está longe de ser o ideal para fazer o grupo de cães se adequar bem. Muitas das práticas que vemos hoje nesses espaços são apenas mais projeções nos cães da nossa visão de “diversão” para crianças pequenas. É mais uma grande distorção de percepção que pode custar muito caro.

Levar o cachorro para um parque.

Parque nos remete à natureza, verde, liberdade e diversão. Porque então não seria um boa opção de socialização para os cães? Considerando o que foi dito sobre cães de origens diversas em creches, que até então são ambientes fechados, com monitoramento constante, e já apresentam riscos, imagine então o que pode acontecer num parque, aonde não existem regras, não existem pré requisitos para entrar, não existe supervisão e nem instrução? O que você acha que pode acontecer?

Considerar essa opção como alternativa de socialização seria literalmente arriscar a vida do seu cão só para ter a satisfação de ver ele “brincando” com outros cachorros. É absolutamente pela satisfação humana que essa prática é feita, nada mais. Para muitos levar o cachorro no parque também acaba sendo uma atividade que substitui caminhadas, treinos diários e outras melhores práticas de socialização que exigem mais de nós humanos. Muita gente vai ao parque, senta no banquinho, solta o cachorro e fica no celular. O cachorro está solto e sujeito à milhares de situações enquanto a pessoa nem precisa sair do lugar. Algum tempo depois a pessoa recolhe o cão e leva para casa sentindo que sua função foi cumprida.

Durante alguns anos que frequentei parques já testemunhei centenas de cenas assustadoras. Cães atacando outros cães, cães atacando pessoas, brigas de cães por brinquedos e até potes de água, cães que correm e se perdem e etc. A lista de problemas possíveis é enorme e os benefícios simplesmente não existem, na minha opinião. De todas as alternativas sugeridas pelo público em geral, essa é, definitivamente a pior, e mais perigosa.

Realisticamente falando, se considerarmos mais uma vez o cão como espécie, dentro do contexto de grupo e migração de unidade nata, essa opção seria letal. Cães podem ter uma experiência bacana num espaço mais natural, mas parques, definitivamente não são esse lugar. Os parques se tornaram uma opção porque? Quem é a população que procura o parque como espaço de distração e interação? Qual é proposta original desses lugares? Parques são lugares para crianças brincarem, correrem e interagirem com outras crianças. Logo, aqui está mais uma vez nossa injeção de humanização na proposta de socialização em parques para cães.

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Trazer um segundo cachorro para o convívio da casa.

Já perdi as contas de quantas vezes ouvi o seguinte argumento: “se você só tem 1 cachorro seria bom você ter 2 para que eles possam fazer companhia um para o outro.”. A ideia da solidão e a necessidade da companhia e suporte de um segundo indivíduo é uma das mais nítidas expressões de emoções humanas projetadas em cães. Veja, humanos e cães são seres que se beneficiam imensamente do convívio com seus semelhantes, porém, ambas espécies são facilmente adaptáveis à diversas formas de convívio.

A ideia de trazer o segundo ou terceiro cão para o convívio de família pode trazer benefícios até um certo ponto, porém, essa mesma ideia pode ter resultados desastrosos. Veja que dentro das sugestões de socialização, quase sempre a expectativa é que os cães façam todo o trabalho, ou seja, já existe aí uma exclusão da responsabilidade humana no processo. A escolha do segundo cão jamais pode acontecer com base nessa premissa. Dois cães significam trabalho dobrado, despesa dobrada, tempo de dedicação à educação dobrado e riscos dobrados. Acreditar que a chegada do segundo cão vai ser uma adição simples na família é mais do que ingênuo, é perigoso e não tão racional.

Semanalmente recebo relatos de pessoas que fizeram essa escolha e hoje vivem problemas graves de brigas sérias entre esses cães em casa. Os quadros são graves e para muitos desses cães a condenação é garantida. Mas porque isso acontece? Afinal os cães não nasceram para viver em grupos? A resposta é simples; a pré disposição para viver em grupos não significa que todos os indivíduos são bons candidatos, especialmente quando falamos de vida doméstica urbana. Novamente esse é uma percepção humana que temos em relação à crianças pequenas. Nós adultos não convivemos com todos os tipos de pessoas, em todos os lugares, em todas as situações. Cada um de nós tem suas características e reservas e convivemos bem apenas com um menor grupo compatível conosco. Apenas na infância temos a expectativa de aceitação coletiva sem restrições.

Mas aonde eu quero chegar? É simples. Trazer um segundo cão para viver com a família não necessariamente vai fazer com que ele ou o outro cão do contexto sejam mais sociáveis. Essa resposta vai depender exclusivamente do que você, como ser humano, vai oferecer a nível de aprendizado e experiências construtivas para cada um, no tempo certo. A única garantia que você terá com a chegada do segundo cão é: o trabalho agora será dobrado, nada mais.

Considerando a perspectiva da espécie, essa situação também não existiria. Os grupos de cães procriam dentro da sua unidade em temporadas, logo jamais acontece a chegada de novo cão estranho no contexto, seja filhote ou não. Os novos filhotes já são esperados no período de gestão da mãe e quando estão prontos são apresentados ao grupo no tempo certo pela mãe. O aprendizado acontece com direção constante da mãe e do grupo ao longo da fase de crescimento. Alguns filhotes sobrevivem, outros não. A lei da natureza é mais objetiva.

Em resumo, a alternativa de ter um segundo cão pode ser uma boa escolha, mas não é uma solução ou possível alternativa de socialização. Um segundo cachorro em casa é simplesmente mais um membro da família. É uma escolha que requer cuidado e extrema noção de responsabilidade. Um erro aqui pode custar a vida de um, ou de ambos os cães.

A intenção desse artigo é trazer a visão de socialização para um patamar mais realista e objetivo, especialmente para quem vive em grandes centros urbanos com cães. Socializar um cachorro significa ensinar à ele a se comportar bem naturalmente em um universo não natural. Muito desse processo é exposição à distância, capacidade de observação, tolerância e práticas de respeito de espaço. As opções disponíveis estão ao seu alcance, todos os dias, dentro da sua própria rotina com seu cão. Isso se chama inclusão social. É quando seu cachorro passa realmente a fazer parte da sua vida, e te acompanhar em diversos programas, sob sua orientação, sabendo o que fazer em cada situação.

A real socialização só começa quando entendemos que cães não são crianças, e que para viveram em sociedade, no nosso contexto urbano, eles precisam de alguém que advogue por eles. Esse alguém é você. Não abra mão desse privilégio. Abrace a sua escolha e inclua seu cão na sua vida, do jeito certo.