Creches para cães: um serviço de conveniência ou de dependência?

O mercado de serviços para cães nunca foi tão vasto como nos dias de hoje. Existem milhares de tipos de serviços disponíveis e um deles, talvez um dos mais populares, é a creche ou Day Care para cães. Hoje vamos explorar um pouco o conceito por trás desse serviço e como, de uma forma ou de outra, ele pode ser uma grande ajuda, ou talvez, a grande condenação do seu cão.

A afirmação parece drástica, mas acreditem, é real. Como uma ex-proprietária de um espaço com esse serviço disponível posso falar honestamente como as coisas devem funcionar, os riscos e a grande responsabilidade que é gerenciar uma creche para cães. Posso atestar também sobre as questões de dependência que podem ser criadas pelos donos desses animais e como, sem uma rotina devida, com protocolos e práticas de segurança, acidentes graves acontecem.

A idéia da creche para cães surgiu há pouco menos de duas décadas atrás quando foi feito um paralelo em relação às creches infantis e como esse serviço poderia ajudar mães e pais que precisavam trabalhar e não tinham com quem deixar seus filhos. Considerando que os casais começaram a ter menos filhos e mais animais, a idéia caiu como uma luva num mercado carente de novos serviços. Os primeiros espaços surgiam e foi um sucesso! Todos entenderam aquela idéia como um paraíso para cães, aonde todos ficavam soltos, corriam e brincavam, e tudo era sempre maravilhoso. Milhares de reportagens cobriam a ascensão desse novo modelo de negócio, sempre vendendo a imagem que o sucesso era praticamente garantido.

Claro que o público em geral abraçou a idéia e hoje existem milhares de espaços que oferecem esse serviço, quase todos com o mesmo apelo: cães 100% soltos, brincadeiras de bolinha, piscina, carinho e amigos à vontade. Eu realmente gostaria de dizer que tudo isso é real, mas infelizmente não é bem assim. O grande erro desse formato de negócio foi desconsiderar que estamos lidando com animais e não crianças. Cada um desses animais, no caso cães, vem de uma família diferente, com hábitos diferentes e características individuais diferentes e habitats diferentes, logo eles não se enquadram na definição de matilha. Sempre lembrando que estamos falando de uma espécie predadora. Colocar tudo isso junto num espaço com brinquedos e diversão pode não ser exatamente a melhor das idéias.

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Quem vai gerenciar esses cães ao longo do dia?

Um dos primeiros problemas que vejo, hoje, nas creches para cães é a mão de obra não qualificada. Boa parte dos funcionários desses espaços nunca trabalharam com cães e tem pouca, ou nenhuma, experiência nesse tipo de manuseio e interação. Isso é um problema grave já que nesses espaços é preciso ter uma enorme percepção de sinais de comunicação, uma boa experiência com manuseio de cães diferentes, e uma sólida noção de treinamento, afinal manter um grupo de 15, 20 ou até 40 cães juntos, todos os dias, requer uma grande habilidade. Sem um bom conhecimento e experiência, sinais de problemas podem passar despercebidos e acidentes graves podem acontecer.

Infelizmente essas vagas são preenchidas por pessoas jovens, que são entusiastas, às vezes, de áreas que não lidam na prática com esse tipo de trabalho, logo a função passa a ser apenas uma nova experiência temporária para essa nova turma. Muitos dessa turma jovem topam esse trabalho porque dizem amar os cães. Isso não é necessariamente um bom sinal. Esse é um trabalho que requer um grande equilíbrio emocional e muita aplicação do racional, logo, pessoas com essa grande inclinação e fascinação pelos cães, tendem a não atuar tão bem nas questões de regras e disciplina, que são cruciais em espaços como esses para garantir a segurança de todos no grupo.

A definição da rotina dos cães.

Muitos espaços que oferecem esse serviço desenham a rotina dos cães com base no que os donos querem ver, ou seja, muitas brincadeiras, muita liberdade e pouca ou nenhuma disciplina. Esse talvez seja um dos grandes motivos pelos quais a maioria das creches oferece o slogan “cães 100% soltos”. Isso é outro grande erro, já que liberdade provida à cães de diversas origens, num espaço novo, pode ser a porta de entrada para futuros problemas de disputa, sem falar de comportamento destrutivo e outros problemas mais.

Aqui também está uma das raízes do grande problema de dependência que muitos donos criam com as creches. Afinal, porque manter o cão em casa quando na creche ele pode fazer tudo que quer, sem que eu (dono) tenha que lidar com as consequência? É mais do que conveniente. É sensacional, vende e elimina toda e qualquer responsabilidade da família sob o comportamento do cão. Mas vamos voltar a esse ponto mais à frente.

A rotina ideal de qualquer espaço para cães deveria considerar o que cada cão precisa, e não só no sentido positivo da coisa, mas na questão de disciplina também. Muitos cães que frequentam creches não são treinados diariamente e a creche passa a ser uma alternativa de alívio para liberar toda a frustração de uma vida sem propósito. Esse não é um bom caminho e não deveria ser a proposta.

Uma boa rotina deve conter exercício físico bem orientado (caminhadas), não correria. Uma boa rotina deve conter atividades de aprendizado para cada cão com objetivos aplicáveis no mundo real, como treinos e condicionamento para situações da vida doméstica e social, não apenas atividades genéricas com todo o grupo junto. Uma boa rotina deve conter aprendizado social gradativo e seguro, que não é colocar todos os cães juntos no mesmo ambiente para ver no que vai dar. O processo de socialização requer muito mais tolerância e disciplina do que muitos imaginam. Interação social é um segundo estágio que deve ser feito com extrema supervisão, devida orientação, por um período específico.

Todos esses pontos que eu citei podem não ser os mais atraentes para um público que coloca os cães no mesmo patamar que crianças, eu entendo. Mas esses são pontos que consideram os cães como espécie e que, com certeza, fariam desses espaços locais muito mais seguros e produtivos. Eu sei, essa ideia não vende, não é o que todo mundo quer ver! Mas é a realidade, e o quanto antes começarmos a falar de realidade, melhor será para nós e para o futuro desses cães.



As regras do lugar.

Normalmente os espaços para cães fazem uma avaliação do novo cão para ver se ele está apto à frequentar o local. Isso é ótimo, porém, a questão é o que estamos procurando nessa avaliação e como ela é feita. Normalmente a avaliação é o resultado do que foi dito pela família mais o momento da primeira visita do cão no lugar. Quem trabalha com cães sabe que o primeiro momento de um cão num lugar novo diz muito pouco sobre quem ele é. Ele normalmente está inseguro, incerto e não necessariamente vai mostrar suas reais cores ali. Ele vai observar mais e fazer menos, com algumas exceções.

O grande problema é, uma vez que o cão foi aceito tudo pode mudar. Depois de alguns dias, ou até mesmo algumas horas, mil coisas diferentes podem acontecer. Cães podem ter comportamentos de disputa, latir compulsivamente, desafiar outros cães e etc. Sem a devida supervisão, ali está o cenário para um acidente acontecer. Se qualquer um de vocês fizer uma pesquisa, vão descobrir que todos os cães que foram expulsos de creches, só assim foram depois de causar reais danos, ou seja, já aconteceu!

O que eu quero dizer com isso é, a prevenção é baseada apenas em supervisão visual já que todos os cães ficam soltos juntos. Isso é assumir um risco enorme, e muitas vezes é o que acontece. Por isso eu advogo tanto por protocolos de segurança, uso de caixas de transporte ou canis internos. Eu sei que isso não é o que o público maior quer ver, mas é o que precisa existir, para a segurança de todos.

Lembrem que cães com reais problemas de comportamento não estão restritos à categoria de agressividade apenas. Dentro de um espaço para cães, problemas como ansiedade, comportamento destrutivo e latidos excessivos podem comprometer o equilíbrio da rotina de todos envolvidos, além de influenciar de forma negativa os cães que tem um comportamento adequado.

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A conveniência que gera dependência.

Eu entendo aonde esses espaços, se gerenciados da forma correta, poderiam ajudar muitas famílias. Com uma boa rotina estruturada, muitos cães poderiam se beneficiar muito desse serviço, porém, o que eu vejo hoje é um serviço de conveniência, que deveria ser uma ajuda, que gerou uma enorme dependência no lado dos humanos. Veja, qualquer serviço para cães deveria entrar como complemento e jamais como substituto. Para um cão evoluir de verdade, de forma completa, um bom trabalho feito em qualquer espaço deve ser continuado pela família em casa. É aqui que começa o problema para muitos donos de creches.

As reclamações são constantes e similares; os cachorros ficam bem aqui mas voltam no dia seguinte piores. As segundas-feiras são o pesadelo! Todos os cães que ficaram o fim de semana em casa voltam, novamente, com os mesmos problemas. E de quem é a culpa? Realisticamente falando, é da creche. Sim, é isso mesmo. Lembre que você, responsável pela creche, também é responsável pela proposta de trabalho que você vende. Se você escolheu vender um serviço atraente, propondo todas as regalias possíveis para os cães, liberdade à vontade, brinquedos e carinho, sem regras, sem disciplina, e o mais importante, sem qualquer participação dos donos na continuidade do trabalho em casa, é hora de assumir as consequências e começar tudo de novo, todos os dias.

É nesse formato de negócio que vemos toda aquela energia inicial sucumbir à uma grande frustração. É ver que a proposta é “ótima” para o seus clientes, só não para você. Na realidade esse formato não é bom para nenhum dos lado, na minha opinião. Os cães de nada se beneficiam, já que vivem uma rotina de adrenalina sem ninguém com a real habilidade de orientação para sua vida à longo prazo, em qualquer situação. Os donos são privados da oportunidade de aprender, de verdade, o que os cães precisam, e o que cada um deles deve fazer em casa para ter um cão bem educado. E os responsáveis pelo espaço perdem a oportunidade de serem grandes professores para esses cães e suas famílias, reduzindo-se assim a meras peças de entretenimento e acolhimento à todos os mimos e vontades das outras duas partes dessa equação.

É fácil entender porque hoje, muitas famílias que levam cães para creches não fazem mais nenhuma outra atividade com seus cães, já que lá tudo que eles querem já é feito e o cão volta para casa exausto, apenas para dormir. É quando o serviço de conveniência se torna uma dependência, e o espaço vira a salvação de muitas famílias que querem ter a vida liberta, sem precisar assumir a real responsabilidade pela educação dos cães. Novamente, a culpa aqui é unicamente dos responsáveis por esses espaços. Parece duro mas é real. Como profissionais somos responsáveis pelo que vendemos, promovemos e entregamos todos os dias.

Em resumo, acredito que espaços bem estruturados, com uma proposta sólida e um trabalho eficaz, que envolve a família e divide as responsabilidades de forma correta pode ser uma grande alternativa de ajuda para muitas famílias. Para quem busca espaços com propostas diferentes, meu conselho é simples: esteja consciente da realidade de sua escolha e os riscos envolvidos, e sempre preparado para assumir consequências que podem ser variações de comportamento no seu cão e até possíveis acidentes entre outras. Quando a escolha é consciente a responsabilidade está em nossas mãos, sempre.