A pessoa por trás de cada cachorro: aonde estão os problemas reais?

Olá pessoal! Hoje eu passo por aqui para compartilhar um pouco sobre minha experiência com famílias e seus cães, e como ao longo dos anos foi ficando cada vez mais claro porque é tão importante entender o ser humano por trás de cada cachorro que apresenta problemas de comportamento.

O trabalho do profissional que atende famílias que tem cães é muito mais complexo do que muitos imaginam. Somos, nessa categoria, muito mais do que adestradores ou especialistas em comportamento canino. Somos seres humanos inseridos em contextos familiares diversos, cada um com suas características singulares, e cada um com uma série de desafios muito mais emocionais e psicológicos do que qualquer outra coisa.

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É interessante ver que quanto mais experiência acumulamos, mais vemos como é importante saber entender quem é cada pessoa por trás de cada cachorro que atendemos. Os problemas relatados na superfície não variam tanto. Sempre recebemos relatos que mencionam questões que parecem simples como cães que destroem coisas da casa, cães que pulam e mordiscam as pessoas, cães que latem constantemente ou puxam na guia e cães que não sabem se comportar em ambientes sociais, além dos casos mais graves de brigas e ataques.

O relato inicial é apenas um pedaço do cenário real. Uma boa parte desse contexto envolve o convívio das pessoas com os cães e como essa dinâmica foi construída. Quase que na maioria dos casos temos famílias que tem pouca instrução sobre a realidade da vida equilibrada com cães e boa parte do problema é estrutural. O que eu quero dizer com problema estrutural é basicamente a realidade da rotina doméstica nos mínimos detalhes. ou seja, o que o cachorro faz da hora que ele acorda até a hora que ele vai dormir.

Aqui no Brasil, e em outros países também, existe uma cultura de criar cães soltos. Isso é sempre vendido como a melhor proposta considerando o termo tão usado "bem estar animal”. Esse termo se transformou num mantra abstrato que nada mais é do que uma grande armadilha para a confusão mental sobre como realmente criar um cachorro doméstico urbano.

O cachorro, como qualquer outro animal, quando colocado num ambiente novo, com total liberdade, sem dúvida vai acabar se metendo em confusão. Tudo no nosso mundo doméstico é novidade para eles e ninguém tem 100% do tempo livre apenas para supervisionar o cachorro, logo, começam os problemas. Algumas pessoas colocam os cães na cozinha, outras na área de serviço outras no quintal ou na garagem. Nada muda! Porque? Porque ainda assim, nesses ambientes, sem supervisão, existem várias possibilidades de erros.

Além da questão do espaço, entra também a questão da interação e até a real intenção ou propósito do cachorro na vida dessa família. Na última década os cães foram colocados na mídia como os verdadeiros anjos salvadores. Eles tem sido mostrados como o remédio para solidão, depressão, falta de amigos ou parceiros sem falar de serem muito “vendidos” como os “melhores amigos” das crianças. É como se tivéssemos ido de um extremo para o outro em questão de 20 anos. Antes o cachorro era para guarda e jamais entrava em casa ou fazia parte da vida de família. Agora o cachorro dorme na cama, come na mesa e não deixa ninguém chegar perto dos donos.

Parece uma comparação extrema, e claro que existem variáveis, mas essa mudança brusca gerou uma confusão enorme na cabeça das pessoas que estão começando agora sua vida com cães. A escolha de ter um cachorro hoje passou a ser totalmente movida pela impulsividade e pelo lado emocional, com pouca ou nenhuma consideração à esse compromisso à longo prazo. E eu não estou falando aqui sobre os cuidados básicos de saúde e custos financeiros, isso é implícito, eu estou falando sobre a construção de uma vida em conjunto com um ser de outra espécie.

Tudo que eu estou citando aqui é de total conhecimento nas rodas dos profissionais, todos sabemos disso, mas o ponto aqui é como lidar com isso, da melhor forma, nos nossos atendimentos.

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Eu acredito que muitos dos treinamentos falham porque falta um elemento simples de compreensão e expectativa por parte dos profissionais. Não podemos nos frustrar quando vemos a realidade das pessoas que estão entrando nessa jornada agora. Considerando que nós sabemos como o mercado de marketing comercial funciona, e como as pessoas são facilmente influenciadas pela propaganda emocional, já podemos nos adiantar e esperar pelo pior, ou seja, pessoas que vão precisar de muita instrução e paciência para chegar nas conclusões do mundo real. Esse é o nosso trabalho!

Eu já estive em diversas situações aonde os atendimentos se tornam uma sessão mais profunda de conversas longas sobre a realidade emocional de cada pessoa. Eu aprendi muito com isso e percebi que é aí que está a chave para as reais mudanças. Claro que é preciso ajustar a nossa expectativa e não acreditar que tudo vai ser perfeito porque provavelmente não vai, mas nosso papel é abrir esse caminho o mostrar para as pessoas por onde começar.

Quando eu mencionei sobre a questão estrutural anteriormente, o que eu quis dizer foi justamente isso: por onde começar. Usar ou não a caixa de transporte, como e quando gerenciar as atividades do cachorro na rotina, como fazer os treinos e etc. são questões que só podem ser colocadas em prática quando as pessoas que vivem com esses cães entendem de verdade o valor de cada um dessas etapas na vida delas com esses animais. De nada adiantaria apenas falar do treinamento em si sem considerar como as pessoas desse contexto vão ser capazes de conduzir essa nova rotina.

Talvez esse esclarecimento seja a peça que falta para muitos profissionais. Por isso eu acho tão importante ter as pessoas (os donos dos cães) participando do processo na íntegra. Muitas vezes, vamos passar mais tempo no processo educativo das famílias do que no treinamento prático com os cães, afinal, são essas pessoas que precisam passar pela mudança de perspectiva para poderem aplicar uma nova postura em relação à vida com o cachorro em questão.

Eu acredito que a forma mais bacana de criar essa conexão com as pessoas é se mostrando de forma clara e transparente, mesmo antes do primeiro contato presencial. Por isso eu gosto tanto do formato de vídeos e textos aqui no site, assim é possível abordar uma série de assuntos que podem ser de extrema valia para os futuros clientes que vão precisar passar por esse processo. Parece que não mas essa conexão no lado pessoal precisa existir para que nosso trabalho seja efetivo, afinal quem vai escutar os conselhos de um profissional que não tem aquela empatia com você?

Por fim, eu acho que meu ponto aqui é simples: vamos nos dedicar um pouco mais às pessoas por trás de cada cachorro que atendemos. Nelas está o futuro. São elas que precisam aprender. São elas que vão garantir que cada cachorro possa ter uma vida mais plena, com mais direção, e sempre mais voltada para uma vida de família com a real inclusão, que vem com muita disciplina e determinação por parte dos humanos envolvidos. Sim, o mercado comercial joga contra. Sim, muita gente não vai querer aprender. Sim, existe uma chance de não dar certo. Mas eu garanto que nesse mar de incertezas sempre vão existir aquelas pessoas que vão apreciar, mais do que você imagina, o seu esforço e vontade de educar uma sociedade sobre como é a real vida com cães.