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A falta de correção é um ato de conformidade.

Em toda sociedade existem regras. Elas normalmente existem para garantir a harmonia de convívio entre todos os indivíduos do contexto. Regras garantem nossa segurança, o respeito por espaços, pessoas e animais e definem os limites de nossas ações em situações diversas da vida. A quebra das regras pode ter graves consequências. No trânsito um ato cometido fora dos limites pode custar a vida de pessoas. No trabalho a quebra de regras pode te custar o emprego e sua sobrevivência. Na escola a quebra de regras pode custar um ano perdido de aprendizado. Em uma relacionamento a quebra de regras pode causar a destruição de uma família, sem falar nos danos emocionais e psicológicos que seguem com as pessoas envolvidas por um longo tempo.

Se analisarmos por essa perspectiva, baseada em fatos, fica fácil identificar a importância das regras em qualquer contexto de convívio social, certo? Então devemos nos perguntar porque é tão difícil para nós aplicarmos esse mesmo conceito no relacionamento e convívio com nossos cães. Porque a idéia de estabelecer regras, limites e restrições para os cães nos remete à um lugar de insegurança e incerteza? O que acontece com nosso lado racional nessas horas? Qual motivo que nos torna tão frágeis a ponto de não conseguirmos tomar a frente das decisões que dizem respeito à nossos cães?

Na minha opinião, vivemos hoje numa era de extrema fragilidade emocional humana. As pessoas se tornaram mais sensíveis, a ideia das regras se tornou um rótulo de intolerância baseada em emoções e os relacionamentos passaram a ser descartáveis, deixando os humanos cada vez mais isolados, inaptos ao convívio social devido à inúmeras divergências e diferenças de opiniões. Tudo isso fez com que os animais de estimação se tornassem a grande válvula de escape para suprir o espaço vazio das relações profundas, tão necessárias para a sobrevivência saudável dos humanos.

Toda essa montanha russa de mudanças em perspectivas faz com que a ideia de aplicar regras e disciplina na vida dos cães seja uma tarefa quase que impossível. Afinal, como disciplinar aquele animal que te ama incondicionalmente, que te aceita mesmo quando outras pessoas te criticam, que lambe suas lágrimas quando você chora, que dorme e acorda com você cheio de alegria, independente de quanto você tem na conta do banco, o quão bonito você é e quanto sucesso você faz na sua carreira? Como restringir e limitar qualquer desejo desse ser, que supre todas as suas emoções e só te faz feliz?

Parece um tema de novela mas é real (existem alguns vídeos de comédia, bem elaborados, que ilustram essas situações).

Esse é um vídeo produzido pelo programa Porta dos Fundos, e apesar de ser uma sátira, ilustra muito bem casos extremos, aonde o relacionamento com um cão construído sem regras destrói completamente a vida de uma pessoa.

Vendo toda essa descrição acima quase que podemos descrever os cães como criaturas celestes, sem falhas, que nascem sabendo tudo e que só vieram ao mundo para nos confortar. Então o que acontece quando as coisa começam a dar errado? Quando o cão se torna possessivo, agressivo, pula nas pessoas, faz xixi e cocô pela casa, destrói os móveis, late constantemente, puxa na guia ou ataca outros animais?

Nesse momento duas coisas podem acontecer; a pessoa entende que existe um problema e procura ajuda de um profissional, ou a pessoa entende que existem características do cão que são desagradáveis, mas aceita conviver com elas, iniciando assim um processo de privação e isolamento baseado em aceitação. Os integrantes da primeira categoria já estão na frente, mas ainda precisam enfrentar o grande desafio que é o processo de mudanças. Todo bom profissional vai avaliar o caso e propor mudanças, das mais simples as mais complexas. Esse é um momento determinante aonde se pode identificar as características do ser humano por trás desse cão, sua habilidade de lidar com as novas propostas de mudanças e sua capacidade de colocar tudo em prática.

Aplicar novas regras no convívio com cães não é difícil, mas requer o poder de ver o cão em momentos de estresse e não se deixar levar pela emoção. É não ter pena de ensinar sobre limites, é poder aplicar correções de forma justa entendendo que tudo isso é para o bem do cão. Não são incomuns os casos aonde atendemos cães em situações bem críticas no lado comportamental, e quando o treinamento começa, mesmo vendo a evolução, alguns humanos se sentem muito desconfortáveis. É como se todos aqueles problemas, que nos trouxeram até a família, de repente se tornem a identidade do cão. Ele era reativo, foi corrigido e agora não reage mais. Isso seria um ótimo resultado que deveria trazer muita satisfação, certo? Mas para alguns isso significa que aquele não é mais o seu cão. O foco acaba ficando na correção em si e não na real solução do problema.

Esse mecanismo humano de negação é um grande reflexo do foco nos momentos aonde a disciplina é devidamente aplicada e extingue o comportamento negativo. É aonde vemos que o ser humano da equação não consegue enxergar o progresso e imediatamente se remete à saudades daquele cachorro que tinha todos aqueles problemas mas era amado do mesmo jeito. Vejam que existe uma profunda carência e projeção emocional nessa visão. É como se a aplicação de regras, reforçadas através de correções, podem destruir aquela relação utópica de amor incondicional eterno. É a nossa fraqueza como seres humanos que não nos permite ocupar a real posição de liderança que precisa existir nessa relação.

Há algum tempo atrás eu fiz um vídeo falando sobre a definição de liderança em humanos, e como ela pode ser determinante na nossa relação com os cães. Segue abaixo o link do vídeo para quem tiver interesse.

Realisticamente falando, os cães domésticos, tem hoje muito mais chances de ter uma vida melhor do que em qualquer outra época do mundo. Temos mais informações disponíveis, temos mais profissionais capacitados, temos mais equipamentos de treinamento eficazes, temos mais acessórios e temos mais serviços para cães. Tudo isso em enorme escala! Então qual o motivo para tantos problemas?

A resposta está na simples aplicação e reforço de regras que mencionei no primeiro parágrafo desse texto. Os cães são animais de fácil adaptação à vida humana, naturalmente condicionados a viver em grupos e com enormes habilidades de aprendizado, porém eles precisam de pessoas aptas a ensina-los e de um ambiente com um contexto bem organizado para florescerem. Sem isso os problemas vão surgir, não há dúvidas quanto a isso.

Vamos lembrar das analogias descritas no início desse texto e fazer um paralelo para o comportamento dos cães;

Vamos supor que você, na sua mente, estabeleceu algumas regras de convívio para o seu cão que são as seguintes:

  • Xixi e cocô apenas na rua ou no tapete higiênico

  • Não é permitido puxar na guia

  • Não é permitido avançar em outros cães ou pessoas

  • Não são permitidos latidos sem razão

  • Não é permitido comportamento destrutivo

  • Não é permitido destruir os móveis da casa

Para que essas regras sejam cumpridas é preciso que você treine o seu cão em cada uma dessas situações, todos os dias, usando um conceito simples: encorajar o correto e corrigir o errado. Caso você falhe em ambas as categorias, as regras vão existir apenas na sua mente. Se não existe motivação para fazer o certo ou correção por ter feito errado, na verdade, não existe nenhuma estruturada de orientação, apenas uma ideia que nunca se materializou.

Colocar tudo isso na prática requer um trabalho diário, especialmente no nosso lado pessoal de disciplina e comprometimento com um objetivo final. Não basta querer, é preciso fazer. Quando eu falei em projeção de emoções e negação, eu queria ilustrar esse momento, aonde projetamos a ideia de restrição em nós mesmos, e entendemos essa punição como um ataque. É como se alguém dissesse que você não pode fazer alguma coisa, que você não é bom o suficiente, ou quando recebemos críticas. Temos uma dificuldade enorme em lidar com isso no universo pessoal social, logo, fazer o papel inverso na relação com nossos cães se torna inaceitável.

Com diz o ditado, “não existe almoço grátis”, e o mesmo vale para o resultado que queremos ter na vida com nossos cães. Podemos criar milhões da fantasias e um universo utópico pessoal aonde nada disso tem valor, mas, no mundo real é bem diferente. Um mundo sem regras é um mundo caótico, e a vida dentro desse cenário está longe de ser o ideal. Para saber aplicar regras precisamos saber viver dentro delas e aceitar as consequências quando passamos dos limites. Quem entende esse conceito vive melhor, com mais liberdade e mais inclusão. Quem nega, paga um preço bem maior. Assim vale também para os cães.

Em resumo, a falta de correção é um ato de conformidade, que pode ter, em si, enormes consequências. Quem paga o preço mais alto é sempre o cão, privado de valiosas orientações, vivendo num mundo pequeno e isolado sem a menor chance de sucesso, apenas para prover a diária satisfação humana de conforto emocional e negação do mundo real. Isso pode descrito como qualquer coisa, menos amor. Pensem nisso.


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